A sansei Livia é goleira do Botafogo do Rio de Janeiro

Alexandre Ezaki, Toyokawa (Aichi)

O meia Keisuke Honda, que jogou três Copas do Mundo e marcou 37 gols em 98 partidas pelo Japão, estreou no Botafogo de Futebol e Regatas, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2020. Insatisfeito com os resultados do clube no Campeonato Brasileiro, recentemente manifestou a vontade de sair.

Mas ele reconsiderou, disse que não sairá mais, e que vai se esforçar para ajudar o clube a reverter a atual situação do Botafogo na tabela.

No entanto, uma descendente de japoneses que faz parte do time feminino do Botafogo, nem pensa em sair de lá. Trata-se da sansei (neta de japoneses), Livia Leal Morisawa Rodrigues, que exatamente hoje completa 18 anos de idade.

¨Quando fui chamada, tive uma sensação única. O Botafogo é um clube muito bom em questão de estrutura e conta com uma ótima comissão técnica. Estou feliz demais em defender essa camisa e este clube¨, elogia Livia.

Livia com as meninas do Botafogo (Foto: Cedida)

A atleta foi contratada em setembro, para disputar vários torneios. No Adulto, ela defende o Botafogo no Campeonato Brasileiro Série A2; e na categoria Sub-18, nos campeonatos Carioca e Brasileiro.

O Botafogo criou o time de futebol feminino em 2013, para participar do Campeonato Carioca, quando terminou em quarto lugar. No ano seguinte foi campeão invicto do mesmo torneio e estreou no Campeonato Brasileiro, sendo eliminado na semifinal.

Em 2015 disputou a Copa do Brasil, mas foi eliminado nas oitavas de final. O time foi desmontado e reativado em 2019, quando o clube participou da Série A2 do Brasileiro.

Infância

A jogadora de futebol Livia já passou pela escolinha do Corinthians, pelo time de base do Santos, pelo time de São José dos Campos e, mais recentemente, pelo Fortaleza, antes de entrar no Botafogo. Mas engana-se quem pensa a vida dela é fácil.

Ela nasceu em Toyohashi (Aichi), no dia 13 de dezembro de 2002. Segundo a mãe dela, Lirian, a menina sempre foi agitada. Tanto que veio prematura, de 26 semanas, com 46 centímetros e apenas 2.488 quilos. ¨Mesmo assim ela nunca deu trabalho. Sempre teve opinião forte, mas muito boazinha. O único problema foi que ela nasceu com 100% de estrabismo e teve que passar por duas cirurgias¨, relembra.

Lívia com os pais (Foto: Cedida)

Em outubro de 2004, o pai da atleta, Marcelo, foi diagnosticado com câncer (linfoma de Hodgkin), notícia que abalou a família, mas os uniu mais ainda. Foram seis meses de tratamento até a cura.

Vencida a batalha, a vida seguiu seu curso. Em janeiro de 2007, a família desembarcou no Brasil. Livia tinha 4 anos e logo entrou na escolinha. Aos 5 anos, os pais a levaram para escolher um esporte, entre eles natação, judô, ginástica, futebol, além do ballet. ¨Chegando em casa, ela me disse que queria jogar futebol. Este foi o início dela¨, conta Lirian. ¨Foi o esporte que mais me senti a vontade¨, afirma Livia.

Futebol, basquete e volta às origens

Numa época em que haviam apenas meninos inscritos, dos 5 aos 11 anos ela jogou na escolinha Chute Inicial, do Corinthians. Ela começou jogando na linha, mas quando o goleiro do time faltou, não pensou duas vezes e pediu ao professor para entrar no gol. ¨E então descobrimos uma muralha¨, elogia Lirian.

Livia numa pausa do treinamento (Foto: Cedida)

Mas a escolinha era paga e, sem condições financeiras, a atleta teve que sair. Dessa época, a jogadora lembra de agradecer Ricardo Mark, o professor que lhe deu a primeira oportunidade de jogar no gol e a incentivar a fazer a peneira no Santos.

Mas ela não parou, indo jogar no time do condomínio em que morava, ficando até os 12 anos. No último jogo pelo condomínio, ela foi escolhida a melhor em campo e o time foi campeão.

Como não gosta de ficar parada, Lívia partiu para o basquete. A professora Denise Balbino, do Colégio Amorim, disse que ela levava jeito e os pais da jogadora, com ajuda do padrinho Márcio Mesquita, a inscreveram no time do Sesi, no projeto Atletas do Futuro.

Com apenas 15 dias de treino, ela foi convocada para o time feminino de basquete do Sesi, ficando até os 13 anos. Saiu porque passou numa peneira (teste) no time feminino de São José dos Campos, ficando por dois anos.

Nas férias de julho de 2018, foi treinar numa escolinha de futebol. Lá ficou sabendo de uma peneira no Santos e, mesmo estando três anos longe do futebol, se inscreveu. Participaram 470 meninas, mas apenas 8 foram aprovadas, entre elas Livia, a única goleira. Começou a treinar em julho mesmo. ¨Assim ela se despediu do basquete para fazer o que realmente gosta¨, recorda a mãe da garota.

Lívia com Márcio, treinador de goleiras do Sub-18 (Foto: Cedida)

No time de base Sereinhas da Vila, ficou até fevereiro deste ano. Com a equipe foi vice-campeã na Copa Gevi, na Copa Nike, no Campeonato Brasileiro Sub-16 e no Paulista Sub-17. ¨O Revinho, meu preparador no Santos, foi muito importante, porque apesar de tudo que aconteceu, não deixou de acreditar em meu potencial¨, enaltece.

Fortaleza

E em março, veio o convite para integrar o elenco de um time adulto, profissional. No dia 5 recebeu uma proposta do Fortaleza, do Ceará, e já no dia seguinte embarcou para o novo desafio.

Mas a alegria durou apenas um mês. A pandemia do Coronavírus começou a se espalhar, atingindo o Brasil em cheio. Como medida de segurança, o Fortaleza decidiu mandar as jogadoras de volta para casa, garantindo que ninguém seria demitida.

Nesse período ela manteve os treinamentos, sempre com o apoio do preparador físico Anderson, que inventava maneiras de deixá-la na ativa.

Mas nada é fácil para Livia e mais uma surpresa surgiu. Contrariando o que havia acertado, o Fortaleza dispensou todas as jogadoras. ¨Eu não esperava por isso, porque eles haviam garantido nossos contratos. Mas foi algo que me motivou a treinar mais e a lutar para chegar em outro clube¨, explica a atleta.

Preconceito

E chegou. Olheiros do Botafogo viram vários vídeos de Lívia jogando e em setembro a convidaram para integrar a equipe feminina do clube. Na mesma semana se mudou para o Rio de Janeiro. Chegou como a quarta goleira, mas hoje é a primeira reserva do Adulto, onde conta com o apoio do treinador de goleiras Bruno Barboza, e é titular do Sub-18.

Para ter sucesso no campo, Livia treina muito, praticamente todos os dias. Nesse longo caminho, ela passou por várias coisas que teriam feito muita gente desistir. Mas ela escolheu vencer.

Ela lembra um deles: ¨Meu momento mais difícil no futebol foi quando lesionei meu tornozelo. Foi com o apoio da minha mãe que vi que estava fazendo muita coisa errada¨. Na recuperação, ela contou com o apoio de Steh Próspero e a equipe da clinica Luanver.

Lívia com companheiros do Botafogo (Foto: Cedida)

Em várias ocasiões, ela e as colegas de profissão enfrentam o preconceito. Os torcedores xingam as jogadoras, falam que lugar de mulher é na cozinha, que elas não sabem chutar nem jogar. ¨Eles debocham da nossa cara. O que vencemos, fazendo nosso melhor¨, enfatiza Livia.

Seleções

Lirian destaca a força da filha, a qual nenhum obstáculo foi capaz de pará-la. Ela estudava de manhã e treinava a tarde. Chegava tarde em casa, fazia os deveres, ia dormir altas horas da noite e acordava cedo. ¨Essa é um pouco da história da Livia. Nada a impediu de chegar a realizar o sonho de jogar profissionalmente¨, elogia.

Livia explica por que tanto empenho. ¨O futebol para mim é tudo. Ele me ajuda mentalmente, fisicamente e na disciplina. E realmente mudou a minha vida para melhor¨.

Muitos são os sonhos da atleta, entre eles ajudar a família, poder jogar fora do país e defender a Seleção Brasileira. ¨Este é meu maior objetivo. E se pudesse, também queria defender a seleção japonesa, que na verdade é minha terra natal¨, planeja.

Lirian e Marcelo continuam morando em Arujá, município localizado na Região Metropolitana de São Paulo e Alto Tietê. Livia mora no Rio de Janeiro. Mas a família é unida, nem a distância os separa e eles se falam todos os dias.

Para finalizar, a jogadora do Botafogo elenca várias pessoas que gostaria de agradecer, porque sabe que, sozinha, não estaria colhendo agora os bons resultados.

Luva personalizada presta homenagem a avó (Foto: Cedida)

¨Agradeço aos meus pais, que se desdobram para sempre poder me ajudar. Ao meu avô e minha avó Odete, uma mulher que me inspirou muito por toda a luta que ela teve enquanto esteve aqui entre nós. Aos meus tios Laine e Silvio, que continuam morando no Japão. Aos meus padrinhos e aos amigos da minha mãe, que estão sempre prontos a me ajudar¨, conclui.

A história da jogadora Livia Leal Morisawa Rodrigues, faz parte da seção permanente do site Gaijin News: a série Escolhas. Vamos trazer reportagens especiais com personalidades que, ao escolherem caminhos diferentes, tiveram suas vidas transformadas. E também mudaram a vida de outras pessoas.

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Alexandre Ezaki é jornalista formado pela Unesp de Bauru. Adora filmes, séries, músicas e esportes. Como profissional, considera-se um contador de histórias.